POR ELIEZER ORTOLANI NARDOTO*
A família de Oswaldo Bettin despediu-se de seus parentes e de sua pátria, a Itália, embarcando no porto de Gênova no dia 19 de novembro de 1891, com destino ao Brasil, chegando ao porto de Vitória no dia 10 de dezembro de 1891.
Apesar do sofrimento da viagem, estavam felizes por chegarem à “terra prometida”, a nova pátria que escolheram para dar melhores condições de vida aos seus filhos.
Não puderam escolher o destino, as terras mais altas do sul do Estado, mas foram destinados ao núcleo colonial de Nova Venécia, então pertencente ao município de São Mateus, norte do Espírito Santo.
Oswaldo Bettin, chefe da família, com 49 anos, veio com a esposa Anna Demarchi com 39 anos e os filhos: Regina (16), Amália (13), Pietro (11), Sebastiano (9), Pasqua Margheritta (7), Marcelina Maria (5) e Giovanna (2).
Não tinham a menor ideia do que iriam enfrentar na grande jornada de construção de sua história. Uma quarentena em lugar pouco salubre em Vitória; mal acomodados em uma viagem, em pequeno navio de Vitória para São Mateus. Um abrigo também de péssimas condições em São Mateus e o destino: a fazenda de Virgílio Sodré, no sertão de São Mateus.
Nas fazendas de então, o contato do colono imigrante era com o Brasil do interior que tinha acabado de libertar os escravizados.
A maioria dos fazendeiros, seus capatazes e feitores estavam acostumados a lidar de forma violenta com os escravizados e muitos tratavam os colonos da mesma forma.
Já havia na fazenda colonos cearenses, retirantes da grande seca do sertão do Cariri de 1877 e poucos trabalhadores negros livres que nela permaneceram.
Depois de algum tempo de trabalho, a família Bettin fugiu dessa fazenda e se embrenhou nas matas, abrindo uma pequena derrubada, construindo um barraco de madeira coberto com palhas, para abrigo da família que não suportava mais a humilhação do chicote dos feitores, ainda embrutecidos pela cultura escravocrata neles impregnada.
Para esse acampamento no meio da mata foram também as famílias de Giovanni Riguetti, José Lorenzo Daniel, Pedro Sandri, Filomena Fugulin e os Gasparini.
Começaram a derrubada da mata com foices, facões e machados, gastando a saúde e muitos morrendo com a febre que não dava trégua, sem contar as mulheres que morriam de parto.
Mas era dessa terra que deveriam tirar o sustento para a família. Quando começaram a criar galinhas e porcos, era preciso construir abrigos reforçados para protegê-los das onças que rondavam as casas à noite.
De dia, os enormes gaviões pegavam as criações e as italianas tinham medo que carregassem seus filhos bebês, que ficavam enrolados embaixo de algum arvoredo, ou dos pés de café depois que os plantaram, enquanto trabalhavam junto com os maridos, filhos e filhas.
A situação dos colonos italianos era tão precária que o governo italiano proibiu a imigração para o Espírito Santo.
Vejam o teor do decreto:
O Régio Ministério do Interior, considerando que no Estado do Espírito Santo, seja pelo modo como foram conduzidos os serviços de imigração, seja pelas condições econômicas, climáticas e higiênicas da região submetendo aqueles que emigram a riscos e danos gravíssimos, decreta: é proibido até nova ordem aos agentes e subagentes de efetuarem operações de imigração para o porto de Vitória e em geral, para o Estado do Espírito Santo.
Só em 1935 o Espírito Santo voltou a receber novos colonos. Os colonos viviam completamente abandonados na mata, sem ajuda do Estado e nem da Igreja.
Não havia escolas, nem assistência médica. Não havia padres para atendê-los. Rezavam o terço, pedindo a proteção a Deus.
Valiam-se de remédios caseiros e, para proteção de picadas de cobras, valiam-se do velho Cezar Brasileiro, um negro curandeiro que habitava na região. O parto era acompanhado pelas parteiras.
A fazenda da família Bettin está localizada no distrito de Nova Verona, no município de São Mateus, distante cerca de 70 quilômetros da sede.
Essas famílias sempre lutaram com muita dificuldade, tanto em função da distância, como pelos escassos meios de transporte que, a princípio, era feito a pé e depois, no lombo de animais.
Nessas últimas décadas, quem mais atendeu essa região foi a prefeitura de Nova Venécia, que foi distrito de São Mateus e que se emancipou em 1954.
Essas famílias foram fortes e conseguiram posteriormente legitimar suas terras, com muito trabalho e resignação. A família Bettin é numerosa e de hábitos humildes, sem luxo. Os mais velhos mal sabem ler.
Ao enfrentar um processo judicial de desapropriação de suas terras, eles nem sabiam como começar. Por questões processuais e falha na defesa, o INCRA conseguiu essa façanha de obter o decreto de desapropriação para fins de reforma agrária de uma fazenda com mais de uma dezena de herdeiros, propondo uma indenização irrisória em torno de R$ 30 mil por alqueire, quando, na realidade local, o valor do alqueire se aproxima de um milhão de reais, já que a fazenda conta com mais de 300 cabeças de gado, 150 mil pés de café, várias residências, galpões e outras instalações próprias de uma propriedade rural.
E agora eu me dirijo, como historiador dessa região, ao nosso governador do Estado do Espírito Santo Renato Casagrande, que é respeitado pelo povo por ele governado e que também é descendente de colonos italianos que passaram por dificuldades iguais ou até piores do que as que foram aqui foram apresentadas.
Senhor Governador,
Os antepassados dessa família tiveram que fugir do local em que trabalhavam, por causa do chicote dos feitores e buscaram nas matas virgens um local para a realização do sonho de todo o imigrante: uma terra para trabalhar e tirar o sustento da sua família.
Depois de passados mais de 100 anos e de terem os seus antepassados construídos um patrimônio, em várias gerações, agora vai ser expulsa de sua própria terra pelo Estado Brasileiro por falhas processuais? Por questões burocráticas?
O açoite agora é usado pelo próprio estado que deveria protegê-los? O senhor vai deixar acontecer no estado que o senhor governa, uma injustiça dessa, na qual dezenas de pessoas, inclusive idosos e crianças vão ser expulsos da terra que foi desbravada com suor e sangue pelos seus antepassados que ali estão sepultados?
Aquela terra para eles não é objeto de especulação. Nela está a história da família Bettin. A memória da família está na casa alta, de varanda alta, assoalho com tábuas serradas no traçador gurpião, com esteios lavrados a machado pelos seus antepassados.
Os filhos e netos que nela hoje habitam e dela tiram o sustento de suas famílias aprenderam a trabalhar com seus pais. Vivem na simplicidade do campo. Vão à reza no domingo na capela. Conhecem cada árvore frutífera da fazenda, muitas centenárias.
Curtem o passeio a cavalo, ordenham as vacas, criam seus pequenos animais e, agora, que começam a desfrutar dos benefícios advindos do trabalho de dezenas de anos, terão que começar tudo outra vez, em outro local, com uma indenização irrisória que não conseguirão adquirir uma casa sequer para cada filho.
Tenho certeza, senhor governador, que o senhor não sabia dessa história e que não deixará que isso venha ocorrer, para o bem do Estado que governa e do povo que acredita na sua boa fé.
Aconteceu uma grande manifestação de produtores rurais em apoio à família Bettin no último dia 6 de janeiro e por todos foi manifestada a confiança de que o governador poderia interferir para evitar tamanha injustiça e interceder junto ao governo federal para suspender essa desapropriação.
Temos convicção de que o bom senso será retomado para evitar essa injustiça.
*Eliezer Ortolani Nardoto é historiador, morador de São Mateus-ES
…
CENSURA ZERO – AQUI TEM CONTEÚDO! | REDAÇÃO MULTIMÍDIA