PALAVRAS & IDEIAS – Por que livros são queimados e proibidos?

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POR ADRIANA PIN*

Em tempos sombrios e de caça às bruxas, em que pseudodiscursos democráticos surgem e se sustentam na América Latina e em outros lugares do mundo por meio de fake news, vale a pena lembrar um livro importante para a manutenção da Democracia: A Constituição Brasileira de 1988, que em seu artigo 5º contém 78 incisos que buscam garantir os direitos fundamentais − a liberdade, a dignidade e a igualdade a todos os cidadãos brasileiros.  

Precisamente no inciso IX, é difundida a liberdade de expressão: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.” Ao mesmo tempo, o inciso X nos lembra que não podemos utilizar a liberdade de expressão para ferir o direito do outro, isto é, não podemos ferir a intimidade, a privacidade, a honra e a imagem da outra pessoa. Portanto, discursos racistas, homofóbicos, que inferiorizam as mulheres, a condição social, a origem, a crença, dentre outros devem ser veementemente combatidos em nossa sociedade, não cabendo eufemismos ou “brincadeiras/humor” que possam sustentar de maneira mascarada esses discursos. Para que tenhamos liberdade, precisamos respeitar as restrições. 

Ao longo da História da humanidade, por diversas vezes, essa tão cara liberdade nos foi cerceada. Representada, pela primeira vez, na Declaração dos direitos do homem e do cidadão, elaborada durante a Revolução Francesa, em 1789, esse documento e marco histórico tão importantes influenciaram várias independências de países do continente americano do jugo de seus colonizadores e inspiraram a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU, em 1948, após o horror que foi a Segunda Guerra Mundial, tendo como protagonistas dessa destruição o holocausto e as explosões em Hiroshima e Nagasaki. 

Retomando a essência do inciso IX da nossa Constituição, a liberdade expressa por ideias, concepções, comportamentos, atitudes, entre outras formas, é traduzida para o mundo das palavras, principalmente em livros, em diferentes expressões artísticas, jornais e outros veículos de comunicação. Por isso, muitos foram os escritores, artistas, cientistas, intelectuais, estudantes, professores, jornalistas… perseguidos e mortos por aqueles que tentaram rentear a liberdade de expressão. Galileu Galilei quase foi enviado para a fogueira da Inquisição, por dizer que a Terra era redonda. Em 1933, o mundo viu o Nazismo queimar na Alemanha, aproximadamente, três mil obras proibidas pelo regime, as quais se opunham a toda aquela barbárie. Poucos se opuseram; muitos se calaram diante das cinzas de páginas e páginas em favor da liberdade.  

Infelizmente, aqui no Brasil, também temos exemplos dessa fogueira que silencia as vozes da liberdade. Em 1937, a obra Capitães da Areia de Jorge Amado, sucesso de crítica e de público, foi confiscada e queimada em praça pública, em Salvador, por ordem do comando da 6ª. Região Militar. Com seu típico humor baiano, Jorge Amado disse que até ata da queima fizeram, mas isso não calou o escritor. E quando lemos a obra, nos perguntamos o porquê de tamanha atrocidade, pois a narrativa denuncia a situação de várias crianças abandonadas nas ruas de Salvador, configurando-se em descaso do governo e da sociedade, sem qualquer política pública para se combater o problema. Em vez disso, as crianças eram perseguidas e tratadas como criminosos, muitas sendo assassinadas brutalmente. 

Recentemente, a escola vem sendo atacada por trabalhar certos livros em sala de aula, como O Diário de Anne Frank e O menino que espiava para dentro de Ana Maria Machado, gerando distorções e interpretações errôneas acerca do que é trabalhado, muitas vezes por não haver um acompanhamento e presença da família na escola, em diálogo com os educadores. Sabemos que existem leis que regulamentam diversões e espetáculos, filmes, livros e outros por faixa etárias, definindo horários, locais, acesso, buscando proteger a criança e o adolescente. Isso, é claro, deve ser defendido e garantido, em proteção e bem-estar de todos, contudo, é preciso lembrar que o professor é um especialista da educação, estudou muito, preparou-se, portanto, dificilmente irá abordar algum texto ou utilizar algum recurso que vá contra a esses preceitos. Muitos livros tratam de temas delicados, como a morte, o abandono, a violência… e isso precisa ser discutido na escola, respeitando a idade do educando, cuja adequação da linguagem é essencial ao se abordar tais temáticas. O diálogo e o acompanhamento responsável da família, nesse caso, será sempre o melhor caminho, em vez de jogar a escola, os professores e os livros na fogueira da ignorância que trepida em nosso país. 

Entre monarquias absolutas, ditaduras militares, atos institucionais (e tentativas absurdas de resgatá-los), regimes extremistas e tantas formas de governos autoritárias, a liberdade é cerceada, mas continuamos lutando por sua garantia, ao longo da nossa História. Dentre tantos que surgem para defendê-la, em pleno século XXI, há uma paquistanesa chamada Malala, jovem vencedora do Nobel da Paz e símbolo da luta pelo direito à educação das meninas, vítima e sobrevivente da violência do Talibã. 

Garantir a liberdade de expressão será sempre nosso desafio, nossa luta, mas não podemos nos esquivar disso. No grande clássico da Literatura infantil, Alice no país das maravilhas do escritor inglês, Lewis Carrol, a Rainha de Copas diz que é mais fácil ser temida do que amada, e manda cortar todas as cabeças de quem ousar se opor a ela, mas Alice, uma criança diante daquele autoritarismo absurdo e abuso de poder, diz “não”.  E lembrando o que disse o poeta Heinrich Heine: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas.”.

*ADRIANA PIN é professora de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa no Ensino Médio, Graduação e Pós-Graduação do IFES, doutora em Letras pela UFES e pesquisadora das relações entre Literatura e Indústria Cultural, do Ensino de Literatura e da Leitura literária no Ensino Médio. | Contato: pinadriana5@gmail.com 

Quer saber mais sobre o assunto? Sugerimos as seguintes leituras: 

AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 

CARROL, Lewis. Alice: Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. 

DINI, Aline. A história por trás do livro de Ana Maria Machado, que gerou a polêmica do engasgo com a maçãDisponível em: https://revistacrescer.globo.com/Voce-precisa-saber/noticia/2018/09/historia-por-tras-do-livro-de-ana-maria-machado-que-gerou-polemica-do-engasgo-com-maca.htmlAcesso em: 06 mar. 2021. 

FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.

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