PALAVRAS & IDEIAS – “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”

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POR ADRIANA PIN*

“Leba – laro – ô ô ô ô
Ebó lebará – laiá – laiá – ô
Reluziu”

Carnaval de 1989, Rio de Janeiro. Ecoando na Sapucaí, pela belíssima voz de Neguinho da Beija-Flor, assim começava o samba-enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” da G.E.E.S. Beija-Flor de Nilópolis, desfilando a criatividade, a irreverência e o talento do carnavalesco Joãosinho Trinta. O carro abre-alas trazia o “Cristo-mendigo” coberto por sacos de lixo, com uma faixa, escrito: “Mesmo proibido, olhai por nós”. Ao redor da alegoria, os excluídos: mendigos, prostitutas, esfomeados, moradores de rua, menores abandonados, profetas… desfilando e pondo em evidência a hipocrisia e as diferenças sociais do Brasil. Na arquibancada, o público envolvido pelo ritmo da bateria, pela alegria escancarada daqueles que desfilavam e pela crítica presente na letra e na melodia, cantava junto. A repercussão nos jornais e na TV foi imediata, e a Beija-Flor se tornava a favorita para ser a campeã do carnaval carioca, naquele ano. Mas, havia a Imperatriz… 

“Liberdade, liberdade! 
Abra as asas sobre nós (bis) 
E que a voz da igualdade 
Seja sempre a nossa voz” 

Em 15 de novembro de 1989, o Brasil comemoraria o Centenário da Proclamação da República. A letra do samba-enredo e os tamborins construíam a sonância histórica da nossa frágil República Brasileira, convidando-nos a reviver “O império decadente, muito rico, incoerente”. Com a libertação dos escravizados, o “sonho republicano” havia sido proclamado finalmente pelo Marechal Deodoro da Fonseca, há cem anos. Mas a falta de planejamento para os negros libertos resultando em um futuro de violência, preconceito e exclusão e uma República marcada por vários golpes de Estado, oligarquias e ditaduras nos mostrava que não havia muito o que comemorar. Todavia, o samba-enredo repicou na Sapucaí, contagiando o público também. Os versos “Liberdade, liberdade!/Abra as asas sobre nós” tocavam em nossos corações, nos enchendo de esperança. Mas eu torcia para a Beija-Flor e gritava: Campeã, campeã! 

Não foi dessa vez. A Beija-Flor ficou em segundo lugar, e a Imperatriz Leopoldinense foi a campeã. Mas eu continuaria a ser Beija-Flor, a Mangueira que me perdoe, porque havia no samba-enredo da escola de Joãosinho Trinta uma verdade que eu, ainda muito jovem, começava a perceber e a compreender; uma verdade que começava a se mostrar depois de anos e anos de silêncio, opressão, perseguições, prisões, exílios e mortes – “Se ficar o rato pega/Se cair urubu come”. Toda a dor do Brasil cabia na voz de Neguinho da Beija-Flor; toda a alegria, luta e resistência do povo brasileiro cabia naquele samba-enredo. E para mim e muitos brasileiros, a Beija-Flor foi, sim, a grande campeã do Carnaval Carioca de 1989. 

Marcando fortemente nossa identidade, o Carnaval brasileiro expressa nossa cultura, nosso povo, nossa história e nossa alma. Ele traz em suas alegorias, fantasias, marchinhas, canções, blocos, sambas-enredos… a nossa essência. Por isso, sabemos que será muito difícil fazer essa linda festa da Cultura Brasileira em 2021, depois de quase um ano de pandemia desfilando medo, morte, intolerância, ignorância, irresponsabilidade e incompetência político-administrativa. Mas que soem os tamborins! Vamos enfeitar nossas máscaras de plumas e paetês, cobrir nossos corações de confetes e serpentinas! Vamos abrir alas para a “Ciência, o Conhecimento e a Vacinação”, como samba-enredo de um futuro melhor! Vamos ver a alegria desfilando, novamente, na avenida! Não roubarão nossas fantasias! 

“Vibra meu povo 
Embala o corpo 
A loucura é geral 
Larguem minha fantasia 
Que agonia… Deixem-me 
Mostrar meu carnaval” 

*ADRIANA PIN é professora de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa no Ensino Médio, Graduação e Pós-Graduação do IFES, doutora em Letras pela UFES e pesquisadora das relações entre Literatura e Indústria Cultural, do Ensino de Literatura e da Leitura literária no Ensino Médio. | Contato: pinadriana5@gmail.com 

Quer saber mais sobre o assunto? Sugerimos as seguintes leituras: 

BEIJA-FLOR DE NILÓPOLIS. Ratos e urubus, larguem minha fantasia. Disponível em:  https://youtu.be/lZHGNKeLo2o Acesso em: 13 fev. 2021. 

IMPERATRIZ LEOPOLDINENSE. Liberdade, liberdade! Abra as asas sobre nós. Disponível em: https://youtu.be/ekln07krQtI  Acesso em: 13 fev. 2021. 

SP-ARTE. Ratos e urubus encontram novos pares. Disponível em: https://www.sp-arte.com/editorial/ratos-e-urubus-encontram-novos-pares/ Acesso em: 13 fev. 2021. 

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