PALAVRAS & IDEIAS – Redação do Enem 2020: eixos temáticos, prova digital, pandemia e exclusão

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POR ADRIANA PIN*

Os dois temas da redação do Enem 2020 abordaram problemas bastante pertinentes à sociedade brasileira. No dia 17 de janeiro de 2021, no formato impresso, os candidatos escreveram sobre O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira. Já no dia 31, o tema foi O desafio de reduzir as desigualdades entre as regiões do Brasil. Embora esse tema tenha feito parte da prova digital, a redação continuou a ser manuscrita, à caneta preta, em formulário próprio. E a prova objetiva foi realizada por meio de computadores e equipamentos específicos disponibilizados nos locais do exame. 

O primeiro tema não surpreendeu. Por causa da pandemia da covid-19, o eixo Saúde era esperado pelos professores, escolas e cursos preparatórios para o Enem. As chances de um tema específico sobre a pandemia ser cobrado eram pequenas, mas havia a expectativa de algo relacionado a isso, como o impacto do contexto pandêmico na saúde, nos esportes, na economia e na educação, por exemplo. Dessa vez, não houve surpresas, como em 2017 (Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil) e em 2019 (Democratização do acesso ao cinema no Brasil).  

Quanto ao segundo tema, menos esperado, não chegou a surpreender e não gerou grandes dificuldades de ser discutido, pelo menos para os candidatos que estavam preparados. Abordando o eixo Economia e Desenvolvimento, foi bem recebido, considerando a sua relevância na construção de ideias e argumentos na produção do texto dissertativo-argumentativo, gênero textual cobrado na Redação do Enem. 

Doenças mentais e o estigma relacionado a elas foram palavras-chave, importantes de serem mencionadas na primeira redação, evitando a tangência ou fuga ao tema. A coletânea da proposta trouxe três textos norteadores aos candidatos, apontando a diferença entre saúde mental e doenças mentais, a importância de termos consciência dos nossos limites, de pedir ajuda e da necessidade de resiliência frente aos conflitos e desafios diários e como, muitas vezes, as redes sociais contribuem para o adoecimento das pessoas. A proposta teve o cuidado de discutir o significado da palavra “estigma”, demonstrando o preconceito e a banalização que a sociedade brasileira pode produzir em relação às doenças mentais. Também foram mostrados dados estatísticos que evidenciam o grande impacto desse problema na economia e na saúde da população do país. 

Na segunda proposta, a coletânea de quatro textos destaca mudanças significativas na economia e no desenvolvimento do país, no que se refere à pobreza e à garantia de serviços essenciais aos brasileiros, numa perspectiva comparativa entre as regiões. Apesar de ser possível percebermos avanços nos últimos cinquenta anos, por meio dos dados apontados pelo IBGE, em 2019, e pelo geógrafo Milton Santos, desigualdades sociais persistem em maior número nas regiões Norte e Nordeste em relação ao Centro-Oeste, ao Sul e ao Sudeste.      

Analisando o contexto da prova de redação nos dois formatos, é preciso considerar a pandemia e o início da transposição do texto impresso para o digital. O exame que mobiliza, por ano, aproximadamente, 6 milhões de estudantes, registrou nos três dias de prova uma quantidade de faltas expressiva e preocupante, devido ao risco sanitário, à falta de esclarecimentos por parte do MEC e a questões judiciais. Por meio de enquete, os estudantes apontaram a preferência pela realização do exame em maio de 2021, devido à pandemia, no entanto o MEC não considerou esse resultado, argumentando que a realização da prova em janeiro e fevereiro possibilitaria a entrada dos aprovados nas universidades ainda no primeiro semestre de 2021.

As máscaras e o álcool em gel, portanto, acompanharam os estudantes que enfrentaram a pandemia em busca do sonho de entrar na universidade, em que produzir um bom texto é decisivo. Em salas de janelas e portas abertas, em um calor escaldante em boa parte do país, a esperança de conseguir uma oportunidade de formação e acesso ao mundo do trabalho. No Amazonas, as dificuldades se acentuaram, devido ao colapso no sistema de saúde, e essa oportunidade foi adiada. 

Dos 96 mil candidatos confirmados para a prova digital, menos de 30 mil compareceram, no último domingo. Planejado para atingir 100% dos candidatos, até 2026, a nova versão do Enem, disponibilizada em 2020 apenas para algumas cidades brasileiras, começa com muitos desafios, mas traz nas suas entrelinhas os reflexos da intensa transformação tecnológica e científica que vive o mundo. Vídeos, gifs e áudios poderão ser utilizados no enunciado das questões, promovendo mudanças na elaboração das provas. Todavia, educadores e pesquisadores temem que alguns estudantes sejam excluídos desse processo, visto que nosso país apresenta diferenças em relação ao acesso à educação de qualidade. 

Essa falta de equidade se destaca, principalmente, no que se refere ao acesso a computadores, smartphones, tablets, internet e a outros dispositivos móveis. A pandemia no contexto brasileiro aumentou e evidenciou as diferenças que já eram grandes em relação às regiões brasileiras e às classes sociais. Assim que as escolas brasileiras foram fechadas, em função da covid-19, rapidamente boa parte das escolas particulares se adequou ao ensino remoto e fez o possível para manter o ritmo de estudos das aulas presenciais. Mas sabemos que o mesmo não aconteceu na rede pública, principalmente nas escolas municipais e estaduais.

Muitos estudantes praticamente “perderam” o ano letivo. E o que se inicia demonstra uma escola pública ainda sem direcionamento, estratégias e infraestrutura para conduzir as aulas. Mesmo que haja uma perspectiva de melhoria com a vacinação, sabemos que o processo será lento e gradual, revelando que 2021 continuará precisando de distanciamento social, uso de máscaras e outras condutas e comportamentos necessários ao combate e prevenção da doença. 

Outra diferença, já existente bem antes da pandemia, é em relação à preparação aos estudantes. Enquanto o ensino particular investe bastante em leitura e na elaboração do gênero dissertativo-argumentativo adequado às cinco competências, a escola pública ainda caminha lentamente na preparação dos jovens para que consigam produzir um bom texto. Por mais que o Inep disponibilize material para professores e estudantes, além de curso de formação de avaliadores da Redação do Enem, neste ano aplicado pela Fundação Getúlio Vargas, essas oportunidades de estudo não chegam de forma significativa à escola pública. E o reflexo disso é a dificuldade de ingresso nas universidades públicas. 

Desde o início da sua aplicação, em 1998, cujo planejamento e inserção com o intuito de avaliar a qualidade do Ensino Médio das escolas brasileiras causaram polêmica e resistência por parte de alguns educadores, o Enem buscou corrigir as falhas ao longo dos anos. Sobre a redação, a definição dos critérios de correção foi avançando, procurando evitar discrepâncias na avaliação dos textos, apresentando cinco competências com níveis bem claros, que procuram valorizar o estudante que escreve bem, com coesão e coerência textuais, correção gramatical e que, principalmente, consegue articular ideias e argumentos em defesa de um ponto de vista, sobre diferentes problemas abordados, em cada ano, com senso crítico, boa fundamentação e diálogo com o que aprendeu durante sua formação básica, revelando-se, sobretudo, um leitor e cidadão, que pode não apenas se tornar um bom profissional, mas também contribuir para a transformação da sociedade brasileira e o desenvolvimento do país, diminuindo as nossas históricas injustiças sociais. 

No primeiro ano de sua existência, o tema da redação foi Viver e aprender. Ironicamente, em 2021, que possamos aprender com as dificuldades e viver, em um futuro bem próximo, uma educação pública funcional e justa, portanto com qualidade e valorização. 

*ADRIANA PIN é professora de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa no Ensino Médio, Graduação e Pós-Graduação do IFES, doutora em Letras pela UFES e pesquisadora das relações entre Literatura e Indústria Cultural, do Ensino de Literatura e da Leitura literária no Ensino Médio. | Contato: pinadriana5@gmail.com 

Quer saber mais sobre o assunto? Sugerimos as seguintes leituras: 

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Inep disponibiliza material inédito sobre critérios de correção da redação para auxiliar na preparação para o exame. Disponível em: http://inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/inep-disponibiliza-material-inedito-sobre-criterios-de-correcao-da-redacao-para-auxiliar-na-preparacao-para-o-exame/21206 Acesso em: 17 nov. 2020. 

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. ENEM Redações 2020. Disponível em: https://redacoes.exames.fgv.br/ Acesso em: 25 out. 2020.  

TUDO sobre o Enem. Disponível em: https://descomplica.com.br/tudo-sobre-enem/novidades/todos-os-temas-das-redacoes-enem-atualizado/ Acesso em: 06 fev. 2021.

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