POR ADRIANA PIN*

“Aula de português 

A linguagem 
na ponta da língua, 
tão fácil de falar 
e de entender. 

A linguagem 

na superfície estrelada de letras, 

sabe lá o que ela quer dizer?” 

[…] 

No poema “Aula de Português” de Carlos Drummond de Andrade, é possível perceber a distância que há entre fala e escrita na Língua Portuguesa. Desde que entramos na escola e começamos a ter acesso ao aprendizado da variante culta da língua, também conhecida como padrão ou formal, esse hiato parece se tornar cada vez mais extenso para muitas pessoas. Ao iniciar o processo de alfabetização e aquisição da escrita, o indivíduo já traz consigo uma bagagem linguística, isto é, o jeito de falar da sua região, estado, comunidade e da sua própria família, além de marcas linguísticas da sua idade, gênero, condição socioeconômica, intenções, dentre outros fatores que influenciam a expressão humana. O estudo da língua nomeia esses diferentes modos de fala como variedades linguísticas

Quando ouvimos nossos avós ou pais falarem uma gíria da época deles, o que geralmente pode soar estranho para nós, ou quando nos deparamos com um texto escrito em Português arcaico, chamamos essa variação de diacrônica – o jeito de falar a língua em outra época. Ao lermos um romance de Machado de Assis, por exemplo, é comum encontrarmos palavras como “cousa” e “deveras”, que atualmente não são mais usadas na nossa comunicação. Outras palavras continuam sendo utilizadas, mas passaram por uma metamorfose, como é o caso de vossa mercê – vosmicê – você. 

Quem já teve a oportunidade de participar da Olimpíada de Língua Portuguesa, que acontece a cada dois anos, pôde perceber a sinfonia das diversas regiões e estados brasileiros orquestrada pelos estudantes do Ensino Fundamental e Médio de todo o país: o jeito assertivo de falar do nordestino e o “s” chiado do carioca – heranças do português lusitano; aquela maneira gostosa de se expressar do mineiro, com sabor de queijo, doce de leite, goiabada e café; o R retroflexo de São Paulo, do Vale do Paraíba à periferia; o “pocar” típico do capixaba – legitimamente nosso, “pocando o balão”, “pocando fora” e “pocando na festa”; a variação da vogal “o” para “u” das populações ribeirinhas do Amazonas e do Pará; e uma mistura cantada de Português e Espanhol da região Sul – Barbaridade Tchê! Temos assim a variação diatópica. 

Imaginem se estivermos dentro de um ônibus lotado, infelizmente algo comum no transporte público brasileiro, e nosso ponto de descida estiver próximo, mas nós, lá no fundo… Certamente, em vez de “com licença”, falaremos “cença, cença, cença…”, num tom afobado e apertado, como se fôssemos Ícaro tentando sair do labirinto do Minotauro. A língua também varia de acordo com o meio ou veículo. No ambiente de trabalho ou acadêmico, em um culto religioso ou em um fórum, certamente seremos mais formais, enquanto que numa balada, na praia, nas redes sociais ou em um jogo de futebol nos expressaremos de maneira informal, portanto é preciso uma adequação da nossa linguagem a esses contextos, caracterizando assim a variação diamésica.  

Todavia, a beleza e a diversidade da Língua Portuguesa utilizada aqui no Brasil também revelam nossas gritantes diferenças sociais. Isso está relacionado à escolarização dos falantes, pois o número de anos que uma pessoa permanece na escola geralmente é determinado por sua classe social. Quantos jovens mal conseguem concluir o Ensino Médio, pois precisam, ao mesmo tempo, trabalhar e ajudar no sustento da sua família, não tendo a oportunidade de dar continuidade aos estudos. Ou populações que vivem nos confins do Brasil, cuja distância continental entre sua casa e a escola impossibilitam o acesso a um futuro mais digno. A maneira como um indivíduo se expressa também revela seu grau de escolaridade e o grau de domínio ou não da variante culta – variação diastrática. 

Mas qual é a variedade mais adequada? Existe uma mais correta? Os linguistas dirão que não, pois cada variedade expressa uma face da língua diante da neutralidade de cada verbete do dicionário. Contudo, vale lembrar o que Celso Pedro Luft disse na sua obra Língua e liberdade – que o falante precisa ser um poliglota da sua própria línguaSe considerarmos uma pessoa que fala apenas Português e outra que fala Português e Inglês, certamente a segunda terá uma possibilidade maior de comunicação e interação. Algo parecido acontece com alguém que usa apenas a variedade da sua comunidade e aquela pessoa que faz uso da variante culta, também. Um apresentador de telejornal, por exemplo, utiliza a variante a que temos acesso na escola, não porque ela seja melhor que as demais, mas sim porque representa uma unidade linguística, ou seja, Norte, Sul, Leste e Oeste do Brasil conseguem relativamente entender o que aquele apresentador está falando, resguardando aqui os diferentes níveis de compreensão e interpretação da mensagem. Inevitavelmente, a variante culta representa uma convenção da língua, o que envolve relações de prestígio, poder e acesso a oportunidades. 

Por isso, considero perigosos certos discursos que sugerem não se trabalhar a gramática nas aulas de Língua Portuguesa, mas é preciso entender essa questão e não distorcer os fatos. Em sua obra Por que (não) ensinar gramática na escola, Sírio Possenti, por meio de uma abordagem lúcida, nos mostra que o acesso e domínio da variante culta (embora esse domínio não seja possível totalmente) se constrói em aplicar a gramática ao texto, falado ou escrito; ao uso efetivo e funcional da língua; ao cotidiano e às situações de comunicação. Já foi a época em que precisávamos decorar listas de masculinos e femininos, aumentativos e diminutivos ou de coletivos. A Competência I da Redação do Enem é uma evidência de como é necessário trabalharmos a variante culta na Educação básica, pois a cada ano, na introdução da proposta, lemos assim: “A partir da leitura dos textos motivadores e com base nos conhecimentos construídos ao longo de sua formação, redija texto dissertativo-argumentativo em modalidade escrita formal da língua portuguesa sobre o tema” […]. É, também, por meio da variante culta, que conseguimos uma oportunidade de emprego, obtendo sucesso em uma entrevista, ou ainda escrevemos bem um texto, alcançando uma vaga na universidade.    

O acesso à variante culta da língua é um direito de todo cidadão, assim como é o direito à leitura, à educação, à saúde, à moradia, à alimentação, ao lazer, … à dignidade humana, que nossa tão frágil Constituição Brasileira busca defender. No último verso do poema, Drummond diz que “O português são dois; o outro, mistério.” Que possamos experimentar cada face da nossa língua, em diferentes contextos, construindo uma diversidade linguística de sons e letras, valorizando nossa língua, hoje mais brasileira que portuguesa, construindo nossa identidade linguística, tão defendida pelos escritores do Modernismo.  

*ADRIANA PIN é professora de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa no Ensino Médio, Graduação e Pós-Graduação do IFES, doutora em Letras pela UFES e pesquisadora das relações entre Literatura e Indústria Cultural, do Ensino de Literatura e da Leitura literária no Ensino Médio. | Contato: pinadriana5@gmail.com 

Quer saber mais sobre o assunto? Sugerimos as seguintes leituras: 

LUFT, Celso Pedro. Língua e liberdade. 8. ed. São Paulo: Ática, 2000. 

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar a gramática na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2005. 

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