PALAVRAS & IDEIAS – Sobre “tretas literárias” e a leitura na Educação Básica brasileira

-

POR ADRIANA PIN*

No último sábado (23/01), o popular youtuber brasileiro, Felipe Neto, movimentou as redes sociais com a seguinte “treta” postada no seu twitter [veja aqui]: “Forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis NÃO SÃO PARA ADOLESCENTES! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco.” A postagem rendeu milhares de curtidas e comentários de diferentes leitores, considerando gênero, idade, alguns pesquisadores e professores da área,
dentre outros.

Mesmo não sendo da área de Letras ou da Educação, Felipe Neto traz à tona uma questão que preocupa estudantes, professores de Literatura, escola, leitores, universidades e pesquisadores sobre o assunto: “O que, como, por que e para que ler?” E mais: “Como tornar significativa a leitura para os estudantes da Educação Básica?” Embora a crítica do youtuber seja direcionada à leitura literária no Ensino Médio, essa discussão remonta à Educação infantil e a todo o Ensino Fundamental também. Pesquisas importantes como a Retratos da Leitura no Brasil, 5. edição, publicada em 2020, apontam que os índices de leitura ainda são insuficientes em nosso país: apenas 52% da população é considerada leitora. Os não-leitores apontam como principais causas a falta de tempo (47%) e o fato de não gostarem de ler (28%).

Analisando mais detalhadamente os dados, notamos que enquanto cresce o número de leitores entre 5 a 10 anos, esse percentual cai a partir dos 11 anos. Estabelecendo, portanto, uma comparação disso com a faixa etária dos estudantes da Educação Básica brasileira, percebemos que o gosto e o hábito de leitura parecem caminhar bem da Educação Infantil até o 5º ano do Ensino Fundamental. A partir do 6º ano, há uma queda significativa, que se estende ao Ensino Médio (17-18 anos). Segundo algumas pesquisas acadêmicas, a prioridade ao ensino de conteúdos gramaticais em detrimento da leitura, no Ensino Fundamental II, e o ensino de Literatura sistematizado, preocupando-se mais com a periodização de movimentos literários (Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo…) do que com a leitura e a interpretação do texto no Ensino Médio, são alguns dos principais motivos para a desmotivação da leitura entre os estudantes desses níveis escolares.

Quanto à especificidade da crítica do Felipe Neto, notamos, sim, uma certa resistência dos alunos em ler os clássicos literários no Ensino Médio. Dentre as possíveis causas, estão a linguagem elaborada em variante culta, às vezes antiga, o que requer uma leitura centrada, recorrendo ao dicionário e a um conhecimento amplo do mundo para entender as temáticas abordadas nessas obras. Tomando como exemplo a interpretação e a análise da obra Dom Casmurro de Machado de Assis, é preciso conhecer o contexto histórico do Brasil e da Europa do século XIX; pensamentos predominantes na época, como o Determinismo e Positivismo; a condição da mulher no século XIX e a concepção de família; a organização da sociedade; a estética do Realismo; a linguagem utilizada naquele tempo; o estilo do escritor Machado de Assis, entre outros aspectos, tendo a leitura da obra literária sempre como ponto de partida e como centro e referência de todo o estudo.

Portanto, ler um clássico requer um exercício paciente, denso, de desbravamento da linguagem e da temática, as quais fazem parte de um processo criativo complexo, cuja recepção depende de uma leitura especializada, em que a mediação do professor de Literatura é imprescindível. Há livros que são escritos simplesmente para serem vendidos e consumidos; estes não precisam ser abordados na escola, pois a leitura é de fácil acesso e interpretação. Já as obras do currículo de Literatura do Ensino Médio necessitam de um trabalho adequado do professor, com formação na área, uma vez que possibilitam uma interpretação profunda da realidade, do mundo e da própria existência, contribuindo significativamente para o desenvolvimento da escrita, do raciocínio e do senso crítico.

Mas o que fazer com essa rejeição dos estudantes, apontada pelo youtuber? Tem sido o grande desafio dos professores de Literatura. Estes, muitas vezes, sem nenhum ou pouco apoio e recursos, recorrem a releituras, adaptações, diálogos entre esses textos literários com o teatro, a música, o cinema, com obras contemporâneas…, buscando ressignificá-los com o contexto dos jovens do século XXI, não perdendo de vista que a leitura deve ser o centro de todo o trabalho. Entretanto, não tem sido fácil fazer isso, pois faltam políticas públicas eficazes de incentivo e difusão da leitura no Brasil. Faltam livros, faltam bibliotecas… A própria Base acional Comum Curricular é falha em apontar caminhos para essa problemática.

Dessa forma, simplesmente não propor ou excluir essas leituras parece não ser o melhor caminho, pois tais obras consistem no conhecimento acumulado pela sociedade ao longo do tempo a que “todo cidadão” tem direito. O próprio Felipe Neto só conseguiu fazer o comentário porque, um dia, teve contato com esses textos. Além disso, tal debate é muito denso e demanda muito conhecimento, não podendo ser esgotado nas redes sociais. Contudo, é preciso investir na formação de nossos professores para que estes tenham condições de buscar lternativas metodológicas para trabalharem com funcionalidade a leitura literária, além de promover o acesso à leitura, construção de bibliotecas,… e na valorização da Educação do nosso país, compreendendo a escola como um espaço de conhecimento especializado.

É necessário, também, desconstruir aquela ideia de que a leitura deve ser apenas por fruição. Sim, ler por prazer é importante, mas há obras que são verdadeiros “socos no nosso estômago”. Nenhum leitor será o mesmo depois de ter lido Memórias póstumas de Brás Cubas, Vidas secas, O navio negreiro, O operário em construção, A hora da estrela… São estes e tantos outros clássicos que nos “humanizam”, nas palavras do grande mestre Antonio Candido, mostrando que a Leitura e a Literatura são essenciais como a água, o alimento, a moradia, dormir,… como o direito à vida e a condições mais dignas de existência.

E é bom lembrar que os altos índices de leitura nos países “desenvolvidos” não são uma mera coincidência.

*ADRIANA PIN* é professora de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa no Ensino Médio, Graduação e Pós-Graduação do IFES, doutora em Letras pela UFES e pesquisadora das relações entre Literatura e Indústria Cultural, do Ensino de Literatura e da Leitura literária no Ensino Médio. | Contato: pinadriana5@gmail.com

Quer saber mais sobre o assunto? Sugerimos as seguintes leituras:

-CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

-CÂNDIDO, Antônio. O direito à Literatura. In: Vários escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011.

-INSTITUTO PRÓ-LIVRO (Brasil). Retratos da leitura no Brasil, 2019. São Paulo, 2020. Disponível em: http://plataforma.prolivro.org.br/retratos.php Acesso em: 26 jan. 2021.

-PIN, Adriana. Literatura o Ensino Médio: caminhos para se promover a leitura dos clássicos brasileiros. Revista Contexto/UFES, Vitória, n. 36, p. 239-253, 2019/2. Disponível em:
https://periodicos.ufes.br/contexto/article/view/28267 Acesso em: 26 jan. 2021.

CENSURA ZERO – AQUI TEM CONTEÚDO! | REDAÇÃO MULTIMÍDIA

spot_img

VEJA TAMBÉM:

Open chat
Olá, seja bem-vindo(a) ao portal CENSURA ZERO!
-Faça seu cadastro para receber Boletins Informativos em Transmissão pelo WhatsApp e autorizar o envio de notícias!
-É simples, rápido e seguro, nos termos da nossa Política de Privacidade, disponível no site.
-Deixe seu NOME COMPLETO e a CIDADE onde mora!
Obrigado e volte sempre!