6 motivos por que é tão difícil desenvolver produtos digitais no jornalismo

POR PATY GOMES (JOTA)

No momento em que nós, empreendedores, catamos os cacos das muitas consequências que a pandemia de Covid-19 ainda nos causa e nos preparamos para 2021 com olhos fixos na vacina, trago aqui uma reflexão:

Por que criar produtos digitais é um desafio tão diferente na indústria do jornalismo, se comparado com o que acontece com outras indústrias? Será que podemos extrair alguma lição deste 2020 tão difícil para 2021, que já se mostra como tão desafiador?

Perguntas difíceis, certamente. A crise acertou em cheio as empresas de mídia num momento em que informação de qualidade nunca foi tão importante. Existe uma pandemia de proporções globais acontecendo e transmitir informações corretas se tornou mais do que um dever de ofício, mas um pré-requisito para a sobrevivência. Acontece que, na era das mensagens ‘não sei se é verdade, mas estou repassando’ dos grupos de Whatsapp, as formas de produzir informação, de se conectar com o público e de se mostrar relevante se tornaram completamente diferentes.

As iniciativas de mídia que se mostraram mais sustentáveis nas águas turbulentas dos últimos anos, e do ano passado em especial, têm algo em comum: a visão de produto. Abaixo, listo 6 mudanças de mentalidade necessárias na indústria para a adoção de uma visão de produto e 6 dicas sobre como exercitar essa nova maneira de pensar.

NOÇÃO DE ‘PRONTO’

No jornalismo, nós somos ensinados a publicar nossas histórias apenas quando o que temos em mãos já foi checado e rechecado, quando todos os envolvidos foram ouvidos e quando o arco narrativo não tem nenhum buraco de apuração. Todos os detalhes da matéria devem estar perfeitos e irrefutáveis. E, uma vez que ela esteja pronta, acabou. Pode haver uma continuação no dia seguinte, mas não se altera o que foi publicado no dia anterior. Ou, no caso de alteração e atualização, isso ocorre de forma pontual e identificada. Para produtos digitais, no entanto, não existe perfeição, de forma que um produto, na prática, nunca está terminado. O produto, ou parte dele, está pronto todas as vezes em que o que se tem até ali gera valor para o assinante. É de sua natureza evoluir constantemente. E isso não tem nada a ver com diminuir a qualidade ou negligenciar o que está ganhando vida. Pelo contrário: se relaciona com um compromisso que não é mais pontual, mas que acontece ao longo do tempo — você se torna eternamente responsável pelo produto que você entregou. A mudança aqui requer que jornalistas entendam e se sintam confortáveis com esta nova noção de ‘pronto’.

COLABORAÇÃO

Enquanto as redações aceitam e até incentivam a competição entre repórteres, em ambientes em que se desenvolve produtos digitais, você não vai conseguir chegar muito longe sem colaboração. Um dia em um passado não muito distante, a prova máxima de sucesso de um repórter era o furo, algo obtido com exclusividade e guardado a sete chaves até a publicação. Nesta nova lógica com que trabalhamos, precisamos lidar com problemas tão complexos que indivíduos não são capazes de resolvê-los sozinhos. O sucesso, neste novo cenário, dificilmente é resultado de um indivíduo ou de um rompante de genialidade, mas de um trabalho conjunto em que transparência e comunicação fluida são valores muito mais importantes do que exclusividade. Neste ponto, compartilhar e vivenciar os valores da metodologia ágil ajudam bastante a fazer essa orquestra tocar bem junto.

AUDIÊNCIA

A relação entre jornalistas e seu público ou outros envolvidos é super regulada pelo Código de Ética da profissão — como é o certo. O resultado disso, porém, é que muitos jornalistas têm medo de se aproximar da sua audiência, sob pena de enviesar seu olhar e comprometer sua liberdade editorial. Em uma abordagem que coloca o leitor no centro, no entanto, é vital conhecer o assinante como se ele fosse um amigo próximo: suas dores, suas motivações e frustrações, em que contexto usa o conteúdo da sua organização, o que estava fazendo no segundo anterior e um segundo depois de consumir a informação que sua organização produziu, que papel esta informação tem em sua vida etc. Aqui, uma dica é traçar uma linha clara entre quem produz conteúdo e os que desenvolvem o produto, mesmo que todos sejam jornalistas. O segundo grupo fica com o contato direto com os usuários e repassa os dados colhidos com os assinantes/usuários, anonimizando as informações, quando necessário.

EXPERIÊNCIA DO USUÁRIO

Empresas de mídia, em geral, não têm oferecido uma experiência digital tão boa quanto as de outras indústrias. Como consumidores do universo digital, nossos assinantes estão habituados a pedir comida e carro por aplicativo, encontrar a música que quer ouvir ou a rota mais curta com um toque/clique ou com comando de voz. Mas a indústria da informação ainda sofre com interferência incômoda de anúncios, com a falta de personalização na forma como o conteúdo é entregue e até falta de propósito — este conteúdo é algo que realmente resolve o problema de alguém. Aplicativos não funcionam direito, sites não redimensionam corretamente no celular e oferecem uma experiência tão aquém do que o assinante está acostumado que não é capaz de criar usuários leais. Neste ponto, o segredo é seguir as melhores práticas das empresas de tecnologia, que são as que mais inovam neste quesito, e não nos exemplos do jornalismo.

MERCADO

Se sua empresa está em um mercado de nicho, ela provavelmente compete na interseção de duas indústrias, a da informação e a do nicho. O que os seus competidores chamam de conteúdo de marketing, você considera o core do seu negócio. A parte boa disso é que sua organização provavelmente está produzindo melhor, mais aprofundado e conectado com tendências e especialistas-chave do tema. No entanto, é preciso ir além da produção de um bom conteúdo e ter um conteúdo tão importante que faria com que alguém pagasse por ele recorrentemente. Em mercados de nicho, é importante considerar uma estratégia B2B, na qual você se propõe a resolver problemas de empresas e organizações, e não de indivíduos.

MODELOS DE NEGÓCIO

O jornalismo em geral se vê dependente do combo assinatura-anúncio-doação, modelo que se mostra obsoleto desde a era do impresso, ou de estratégias de vendas de projetos para grants, que são sazonais e dependentes de grandes e poucos atores. Em vez de apostar em projetos ou soluções que resolvem apenas parcialmente ou momentaneamente o problema, as discussões deveriam estar em torno de criar estratégias para a criação de um produto que garanta faturamento recorrente. Mais uma vez, o benchmark deveria vir da indústria de tecnologia. Empresas de mídia deveriam pensar em como adotar uma abordagem de SaaS (software as a service), fazendo as adaptações necessárias para os seus contextos.

No JOTA, vivemos os seis desafios acima no nosso dia a dia. As respostas que encontramos para eles, e que são sugeridas aqui, são construções que respondem ao nosso contexto hoje, mas não são respostas definitivas para todos os problemas, tão pouco uma receita de bolo a ser seguida em qualquer contexto. Outra habilidade importante a se desenvolver no ambiente complexo da indústria da mídia atual é a de responder rápido e se adaptar a diferentes situações. Essas seis dicas servem para jogar um pouco de luz em caminhos nunca trilhados que pareçam muito escuros.

A primeira versão deste texto foi publicada como parte da série ‘2021 visions: how should news product evolve?’, da escola de jornalismo da Cuny (City University of New York). Ela também integra a página ‘Por dentro do JOTA‘, no Medium, em que compartilhamos nossas experiências nas áreas relacionadas à tecnologia no JOTA.

CENSURA ZERO – AQUI TEM CONTEÚDO! | REDAÇÃO MULTIMÍDIA | CRÉDITO: JOTA

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